quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Gilmar de Carvalho: "O que me interessa na xilogravura é a sua capacidade de atualização: de repertório, de técnica"

Gilmar de Carvalho: "O que me interessa na xilogravura é a sua capacidade de atualização: de repertório, de técnica"
FOTO: WALESKA SANTIAGO (19/08/2013)
Seus livros sobre a xilogravura são referenciais para estudiosos da área. Antes deles, que fortuna crítica existia a respeito desta expressão artística? Que cenário você encontrou quando chegou a este campo de pesquisa?
Tinha pouca coisa. Alguns artigos em jornais do Jeová Franklin. Artigos sobre o cordel, que acabavam tratando da xilogravura também, do Oswald Barroso e do Ribamar Lopes. O material era pequeno, talvez porque, em determinado momento, as pessoas estivessem muito mais encantadas pelo cordel. É fácil entender. O cordel é muito sedutor. Aquele folheto de feira... Entra aí todo aquele imaginário de intelectual orgânico, de que fala Gramsci, o imaginário de folhetaria pequena de interior, com maquinário barulhento, composição manual. Isso dava uma aura ao cordel que a xilogravura não tinha. Ela era quase que limitada à capa. Era embalagem disso tudo. E eu queria mostrar que não era bem assim.
A xilo não está presa ao cordel.
Ela é muito rica. Em determinado momento, a xilogravura andou junto com o cordel. Mas nunca foi apenas isso. Ela ilustrou, por exemplo, os rótulos das manufaturas da região (do Cariri) - tenho uma pesquisa com 150 rótulos que consegui reunir (parte dela pode ser vista no livro "Publicidade em Cordel: o Mote do Consumo"). E, depois, no que talvez tenha sido o seu salto mais importante, através das políticas culturais da então Universidade do Ceará (hoje, Federal, a UFC), os autores vão deixar de fazer apenas capa de cordel e vão fazer álbuns. Esse material serial me interessa muito. O primeiro álbum de xilogravura que se tem notícia é do (modernista Oswaldo) Goeldi, de 1950. A gente vai ter uma experiência cearense, 10 anos depois, com Noza, Walderêdo, do Zé Caboclo. É um material muito rico, muito estimulante, que borbulha. Não dá para tentar segurar. Ei tentei colocar isso no livro "A xilogravura de Juazeiro do Norte", mas o material é muito maior que o livro. É maior do que a minha ambição.
As pessoas costumam tomar a xilogravura como uma arte arcaica, mas seus trabalhos mostram que, na verdade, ela é uma expressão vivia, contemporânea.
É muito curioso. De tão bem que ela se harmonizou com o cordel, parece até que a xilogravura foi inventada aqui. O que me interessa nela é exatamente a sua capacidade de atualização: de repertório, de técnica. Você vê como os artistas vão improvisando instrumentos e, com isso, vão alargando essa visão. A xilogravura sai da dinâmica do autor que lê uma história e talha uma representação visual dela. Vamos ter xilogravuras maiores, como temáticas outras, não apenas o imaginário do cordel, mas imagens religiosas, ecológicas, de folguedos, de festas... É todo um mundo que é traduzido nos cortes da xilogravura.
O que dela permanece, que não se perde nesta atualização?
Uma secura do corte está sempre presente. Embora alguns autores tenham tentado meios-tons, ela é basicamente uma arte do contraste, do branco e preto, do claro e escuro. Nesse sentido, podemos aproximá-la do Barroco, mas de um Barroco sem os ornamentos, um Barroco em essência, de tese e antítese, da coisa e sua contradição, não do bem e do mal. Mas ela é, sim, uma arte de contrários. E isso os autores vão manter.
Essa é uma decisão estética?
É estética. Isso permanece e vem desde sempre. Há um historiador da arte, o professor Jorge Coli, da Unicamp, que fala na "ética da gravura". Enquanto na pintura você tem truques para corrigir o que errou - as camadas podem se sobrepor até você chegar àquele resultado final - a gravura é muito rigorosa na questão da ética. Ela vai imprimir o que está na matriz. Você não vai retocar.
A opção pelo corte seco é enunciado na transmissão do conhecimento técnico e estético entre os gravadores ou algo que se aprende de maneira intuitiva?
Acho que isso vem da própria madeira, dos instrumentos. E, por consequência, da própria opção de fazer xilogravura. Você encontra esse corte seco tanto no João Pedro e no Zé Lourenço, como no Goeldi, no Lasar Segall. Independe se é popular ou erudito, se é do Sudeste ou do Nordeste. Parece fazer parte do estatuto da xilogravura. Não existe uma xilogravura edulcorada. Ela sempre reclama algo mais visceral.
É possível falar numa dupla obra de arte: o gravado e a matriz?
Na gravura erudita, a parti r de um determinado número de cópias, a matriz era inutilizada. Os gravadores populares talvez sejam mais apaixonados pelo que fazem ou precisem mais de dinheiro, e por isso eles se recusam a inutilizar a matriz. Ela se torna inútil, muitas vezes, pela quantidade de cópias que dela se faz. A reprodução passa a ser comprometida e ela é abandonada, largada. Mas a matriz é uma obra de arte. E talvez seja mais importante que a própria cópia, pois é nela que se dá esse enfrentamento. Os nós da madeira, a dificuldade de cortar. Há sempre um esforço, algo que vai escavar cortar, há sempre o enfrentamento do artista com o material e isso você vai ver, de maneira clara, na matriz.
Mas há uma preocupação com a gravura, como ela vai ficar no papel.
O objetivo é sempre o que vai ser impresso. É uma arte que dialoga muito como o que chamamos de artes gráficas. Você se preocupa com o resultado no corte, da inversão das letras ao impacto que ele quer passar. Esse impacto, aliás, é importante. Não é do estatuto da gravura ser uma arte decorativa.
Por quê?
Quando se quer fazer algo decorativo, se perde parte da qualidade do que se faz. Por exemplo, algumas gravuras do pernambucano J. Borges são bastante decorativas e, do meu ponto de vista, não têm a mesma dimensão do que fazem gravadores como Stênio Diniz, o Abraão Batista, Costa leite.
É um esvaziamento do discurso?
A casa do J. Borges fica no caminho de Caruaru (PE). É uma visitação muito grande. É como se fosse o Romero Britto da xilogravura. É uma xilogravura para vender. É linda, é colorida, as figuras são soltas, mas sinto que falta de... De sofrimento naquilo. É publicitária demais. Se o Ariano Suassuna estivesse vivo, ia querer me matar (risos).
Dellano Rios
Editor de Área

fONTE: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/caderno-3/sobre-uma-arte-que-sempre-se-atualiza-1.1226349

DIARIO DO NORDESTE 

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